quinta-feira, 7 de março de 2024

Igualdade de oportunidades


Tenho uma planta seca

tão seca

tão morta

num vaso cá de casa.


Uma tragédia

dirão alguns

mas desconhecem a história completa.


É que ela vive

viveu

toda a sua vida de planta

na banca da cozinha

a escassos dois metros da torneira

e eu surpreendo-me:

foi incapaz

de uma vez que fosse

estender-se um pouco

e abrir a torneira.


Eu que durmo lá dentro num quarto

quantas vezes me levanto por um copo

da bendita e distante água?


Era uma planta bonita

lembro-me bem.


Uma pena, não ter dado para mais.

sábado, 4 de novembro de 2023

movimento aparente do sol

já era de manhã

o sol nasceu como todos os dias

eu vivia como todos os anos

já era de tarde

o sol fazia o que faz sempre

cria a hipótese da sombra

eu fazia o que faço sempre

criava hipóteses

sem as materializar

enquanto materialmente envelhecia

já era de noite

o sol jazia debaixo do horizonte

eu convergia com as hipóteses

desmaterializando-me


não mais houve notícias

sábado, 12 de agosto de 2023

Adaga

Na faca o gume
no gume o fio
no fio a carne
na carne vermelho
no sangue o sabor a ferro


do ferro — a faca


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Nascer num McDonalds não faz de ti um cheeseburger

Na primeira noite em Saigão, num dilúvio,

um velho táxi amarelo foi meu alívio.

O indiano que evangeliza o mundo que chora.

Do seu pára-brisas sorri-me uma senhora

de delicadas mãos pousadas no peito. 

Bem tapada e composta, mulher de respeito.


Europeia, és cristã, arriscou a sentença.

Respondi, fui, senhor, forçada à nascença.

Mas ele não queria a história da minha crença

Só que os meus ouvidos escutassem a sua.

Suspirei não mais cair na falcatrua.


Correra todo o mundo nos anos sessenta,

boémio, só a capa no estofo não aparenta. 

Abraçada à minha mochila ouvi-o atenta.  

Pai sique, mãe hindu, a mulher islâmica,

não era ele tonto de suplicar a cerâmica


Aos tantos forasteiros atrás no banco

mandou calar mais o seu deus branco.

Mas num dia escuro o médico lê cancro,

firme e lacónico, sem contraditório.

A medicina nada deu para esse peditório


Correu a Bangalore por salvação,

peregrinou a cada templo com devoção.

Nem gurus, nem shiva, buda ou o corão.

O vizinho padre arrastou-o ao seu território.

Sabes, Cristo curou-me antes do ofertório.


No trânsito imenso em noite de monção,

alagado por um crescente rio Jordão,

o indiano que evangeliza o mundo com fervor

compõe a cruz de malta torta no retrovisor,

proclamando a sua salvação aos setenta

e batismos redentores nas margens do delta.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Conversão à Decrepitude

Olho a janela.

Não sei de nada, não compreendo nada.

Cai a noite

porquê?

O que fiz eu para o justificar?

Aquelas vielas, aqui tão perto, onde vão dar?

Aquelas vielas escuras, aqui tão perto, mesmo dentro de casa, no andar de baixo, no corredor, à minha frente, onde vão dar?

Que ruído é este? Este resfolegar, esta respiração doentia, tão audível, quem é? 

Porque é que está a ganir do meu peito?

Olho assombrado ao redor.

Uma luz ligada dentro de um cómodo ilumina a ranhura da porta.

Abri.

Cegueira absoluta. Só há luz. Uma aura amarela e um branco intensíssimo em todo o grande centro. Arde, queima, dói, abranda, ainda, abranda, melhora, difícil, devagar, ainda incapaz de perceber nada, exceto uma redução da luz. Afastou-se de mim, passou-me, transpôs-me e foi. A recuperação é lenta, os olhos estão fechados por dentro, não se conseguem adaptar a esta nova realidade. Quanto mais a consciência.

E logo, tudo de novo, como uma onda que chega. O clarão branco imenso. Branco tudo. Branco. Só isso.  E uma ronca de navio, como uma tuba gigantesca a ser soprada lá no horizonte, de todos os lados. A luz avança-me novamente. Onde estou eu? Vidros em toda a volta. Está mau tempo, tempestade. A terrível ronca. É difícil organizar pensamento entre vagas. A chuva é atirada em todas as direções pelas rajadas de vento, como se nem houvesse já uma regra, uma orientação vertical, um sentido descendente. A sala da maldita lanterna. Sinto aquela tontura em que parece deixar de haver gravidade, suprime-se o exercício do peso. Desgraçado farol, pútrido faroleiro, a luz aproxima-se novamente. Tudo menos isso. Vi a tempo.

Comecei a mover-me, à frente dela. A sala é circular. Eu caminho antes da luz, ela segue-me. Ela empurra-me. Ela incita-me com uma chibata na espinha e ferrugentas farpas raspadas nas costelas. Não preciso correr nunca. É só um ritmo acima do confortável. Tive sorte. As chibatadas doem, mas costumam ser atiradas para locais alternados, e esse cuidado é louvável.

187 voltas para já, estou exausto, já não respiro como no início a encher os pulmões — isso é quando se tem ainda demasiado medo e algum vigor. Já lá vão mais de dois anos, agora é só deixar a boca entreaberta e vai passando algum ar. Em Estocolmo o dia está bem melhor que cá, aqui a humidade está insuportável. Eu agora vivo lá. Fizemos um acordo: sempre que atinjo o meu limite absoluto de conseguir mover -me àquela velocidade o ritmo reduz para metade e eu continuo mais devagar. Tive muita sorte. Tenho a minha garantia, nunca serei alcançado.

Este é o segredo, ter sempre uma rede de segurança. Um garante. Negociei bem. Outros teriam ficado mal. Tenho um amigo que um dia acordou e lhe disseram que rodariam uma roleta com 10 mil números todas as noites, uma vez só a cada noite, todas as noites. Quando saísse o zero ele não acordaria. O tipo enlouqueceu, claro, que vida era aquela? 

sábado, 22 de outubro de 2022

As ondas em meu cabelo

As ondas em meu cabelo

Solto do teu medo de mar

Hábito de chão

Em que rolas de punhos fechados

Sobre os olhos tão cerrados

À luz

 

Calor algum atravessa

O corpo em fuga

Da vida que em volta

Ameaça desenrolar

Sobre ti


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Quando Sem Melodia Na Voz

um dia, num prado primaveril, desmaiou-me uma flor, só por lhe dizer de uma forma mais áspera para sair do caminho.

domingo, 14 de agosto de 2022

Burro


Burro que caminhas

mas não corres

nessa tua pele de burro

nesse teu pelo castanho e nítido

que contrasta contra este nevoeiro branco.


Tu que entendes o mundo pelos cascos

e que não é uma forma pior nem melhor

de o entender

do que a minha,

é simplesmente diferente

e é-me inacessível.


Tu com as tuas duas orelhas evidentes

que dançam à frente das minhas imóveis e encolhidas orelhas,

ouves tão melhor que eu

mas nunca ouvirás

o desdém

com que usamos o vocábulo que atribuímos para te designar.

E ouvindo

se entendesses

provavelmente nem te importarias

porque o orgulho deve ter pouca expressão

fora da espécie humana.


E é tão bacoco.

domingo, 10 de julho de 2022

duro

arrumo cada canto

enquanto

me desabam os recantos

 

busco acertar meu passo

ao passo

que me perco no compasso

 

descompassado

 

águas residuais passadas

movem-me moinhos

pedra dura

 

fúria mole

dura

fura

sexta-feira, 18 de março de 2022

Poema só com perguntas


O título não faz parte do poema?

Não devia também ser uma pergunta?

A poesia tem de ser verdade?

A arte verdadeira não se chama jornalismo ou história?

Para quê continuar com isto?

Nem um poema há de ser,

que o defraude na arte tem de ser grande para valer a pena. Será à descarada. Ninguém gosta de ver um filme mediamente mau. Que seja ultrajante então. Que saiam do cinema nauseados. Que se façam manifestações, que haja mensagens de ódio nas redes sociais, ameaças ao autor.  Mas nunca placidamente desapontante — esse é o nadir da vocação inútil da arte. Eu se não chegar a bom preferia quedar-me por repulsivo, com estrangeirismos absolutamente despropositados no texto, por exemplo. E com um abuso de auto-referência e recursividade, que de resto até é um defeito que também está bem patente na poesia decente. Que se note a implícita, e depois explícita, todavia ridícula, sugestão de que ser poesia se baliza pelo grafismo do texto. Que se seja condescendente com os leitores e se lhes explique as já parcas subtilezas. Sem coragem — nem isso — para um insulto ou crítica, que se ofereça uma insultuosa ajuda.

Não só uma obra contra si mesma. Uma obra contra quem a assiste.


Isto se não chegar a bom pelo menos que se fique no que já é. 

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Subsolo

É na raiz que está

a dor.

Cá fora é um regimento de suspeitos

circunstanciais,

gente com cadastros tingidos

por delitos menores

apanhados numa rede de garimpo

mal cosida

mas sedenta

de um culpado

sedenta

de encontrar o cascalho

no meio do ouro.


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Todos Sabemos a Mesma Resposta.

Quando pensam na vossa própria morte o que contemplam? Ficam a intuir como será a experiência pós-vida? Ou ficam a imaginar como reagiriam as pessoas mais próximas, as mediamente próximas, uma pessoa particular com quem pouco interagiram, quem seria a pessoa que descobria primeiro, como seriam as logísticas fúnebres e sobretudo emocionais dos vivos?


No fundo

na escura cova do nosso âmago

antes da insinceridade de todos os filtros e bandeiras de que somos partidários

e que interpomos sempre

que nos debruçamos conscientemente sobre isto 

— no fundo —

todos diferentes temos igual convicção

que não há história

nem experiência

depois do fim.



Depois do fim não há nada.

Nada.

Nem mesmo vazio. Nem ausência. Nem nada.

Depois do fim não há.




A história escrever-se-á pelos vivos, o objetivo e o subjetivo pertencerão aos que respiram, quer a carne quer o éter são cognoscíveis pelo mesmo lado da barricada — os que não falam também não têm nada a dizer.

O nosso interesse historiográfico ou emocional pela nossa morte resume-se à experiência dos vivos, tal é a improbabilidade do resto ser relevante.

E um morto também não tem interesses.